"As palavras continuam com seus deslimites"
Manoel de Barros

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Revendo alguns conceitos

Nesta postagem trataremos de dissecar um tema que faz parte do Universo do preconceito lingüístico: a crença de muitos brasileiros que "só em Portugal se fala o português correto. Entenda-se "português correto" pela gramática normativa (para uma breve explicação de gramática normativa clique aqui). Na verdade, este ponto de vista que de tão cristalizado tornou-se "verdade", nos diz coisas importantes do próprio povo brasileiro:

1- A auto-estima baixa do brasileiro o faz aceitar conceitos que só os menospreza. Agora, pense se um americano (estadunidense) diria que só na Inglaterra fala-se inglês corretamente. Improvável, para não dizer impossível. E se alguém o fizesse, seria repreendido instantaneamente. Mas com o ¹brasileiro, a coisa é diferente: ²ele gosta de maldizer-se. Faz parte da cultura. Tudo que é daqui é inferior, inclusive o povo e a própria língua. Fazemos parte de uma paranóia coletiva que nos diz que se falarmos muito mal de tudo o que temos e somos, seremos melhores. O que não é verdade. Fujamos do patriotismo cego que limita qualquer autocrítica necessária para a melhora da sociedade, mas não sejamos também antipatriotas cegos. E o que seriam isto? É o extremo oposto dos patriotas, estes sentem prazer em menosprezar a pátria e não se dão ao trabalho de verificar se seus argumentos são consistentes.

¹”O brasileiro” aqui neste texto representa o povo brasileiro de uma forma geral, não o considerando individualmente. Trata-se de uma abstração.
²Obviamente que existem manifestações de orgulho patriótico no Brasil, mas por não representar as idéias e concepções gerais do povo brasileiro descartei tais manifestações para dar unidade ao argumento. Entenda-se que “de modo geral”, não “de modo absoluto” os brasileiros gostam de falar mal do país e da própria identidade.

Chegamos à parte dois: 
2- O argumento de que "só em Portugal fala-se o português correto" não é consistente, pode-se dizer que até ingênuo. É necessário deixar bem claro alguns pontos: apesar de ser o mesmo idioma (português) o português de Portugal e o português do Brasil são classificados separadamente. Portanto tal comparação é desprovida de sentido. A ortografia é diferenciada, o vocabulário em muitos casos, a sintaxe (o ordem das palavras em um enunciado) e a pronúncia - a primeira marca distintiva. Porém, um brasileiro para viver em Portugal não precisa aprender português - pois já somos alfabetizados e criados nesta língua - mas precisa adaptar-se a um uso diferenciado do idioma. Tomo emprestado dois exemplos apenas, Brasil e Portugal, mas essa comparação pode ser estendida para outros países de colonização portuguesa como Moçambique, Angola e Cabo Verde.

As línguas têm História, por isso não falamos como os portugueses e nunca iremos falar. Para os portugueses "estou a falar" encaixa-se melhor do que "eu estou falando", mas em ambos os casos a mensagem é comunicada e compreendida. O gerúndio, colocado nos casos que são necessários, não são "uma mania do brasileiro". Trata-se do uso que foi aderido no Brasil - por motivos que desconheço - e serviu como uma, entre tantas outras, variação linguística do português de Portugal. É importante salientar que em todos os deslocamentos geográficos, principalmente nos casos inter-continentais e de colonização, a língua sofrerá muitas mudanças. Em primeiro lugar, porque nenhum local é desabitado, pode ser pouco povoado, mas nunca desabitado. Em segundo lugar, porque a formação de um país implica múltiplas influências externas além do país que o colonizou. O Brasil é um exemplo perfeito de colônia multi-influenciada. 

Para corroborar os argumentos deixo aqui alguns textos do acervo permanente do Museu da Língua Portuguesa: (Tentamos colocar as fotos, mas não foi possível devido ao servidor não ter suporte.)


“Do latim ao Português:
 A história das estruturas e formas de uma língua é inseparável da história de seus falantes, da história daqueles que a herdaram, modificaram e recriaram ao longo do tempo.
A língua portuguesa nasceu nos largos e generosos campos do discurso popular, da prática oral da língua, e não do texto erudito, empregado pelos escritores da Roma Imperial.
A língua portuguesa que falamos hoje no Brasil é uma variante da língua portuguesa, modificada pelos encontros com falantes de línguas e indígenas e africanas."

 
“Quicongo, Quimbundo, Umbundo:
Entre os séculos XVI e XIX, foram trazidos para o Brasil entre quatro e cinco milhões de africanos escravizados. Mais da metade deles foi embarcada à força em navios ancorados entre o Gabão e sul de Angola, bem como na costa de Moçambique. Essa multidão de homens, mulheres e crianças falava línguas aparentadas, do grande grupo lingüístico banto. Transportado como cativos por todo o Brasil, foram povoando a língua portuguesa de palavras novas e sonoras. Foram carimbando nela seu jeito de viver e de ver o mundo. Hoje quando dizemos moleque, bunda, tanga, quindim ou quitanda, estamos ecoando as palavras pronunciadas por essas incontáveis vozes africanas. Ouvidas nas ruas das cidades, nas plantações, nas minas de ouro, nas margens dos rios, à beira das estradas, era impossível não imitá-las, era irresistível repeti-las – as palavras que ficaram sendo profundamente nossas.”



(Título não disponível)
“Entre os séculos XVI e XX foram trazidos para o Brasil entre 4 e 5 milhões de africanos escravizados. Desse total, cerca de 1 milhão foram embarcados nos portos da África Ocidental, entre a Costa do Ouro, atual Gana, e o Golfo de Biafra, na Nigéria. Oriundos dos diversos reinos que existiam na região, começaram a aportar no Brasil a partir da segunda metade do século XVII. Seu principal destino foi a cidade de Salvador e o Recôncavo Baiano, Minas Gerais e o Maranhão. As línguas que eles falavam, como o ioruba e o evé-fon, influenciaram a língua portuguesa no Brasil principalmente no domínio religioso.”

Algumas palavras de origem Iorubá: Orixá, Exu, Iemanjá

 
“Brasil: Séculos XIX e XX:
A partir das últimas décadas do século XIX, uma série de mudanças importantes e cada vez mais rápidas marcou a cultura e a língua do Brasil.
O fim da escravidão, a chegada de imigrantes, a industrialização e um contínuo deslocamento de milhares de brasileiros de áreas rurais para os centros urbanos transformaram radicalmente a feição do país. As cidades cresceram e se multiplicaram, tornando-se verdadeiros “caldeirões” da língua, onde passaram a conviver e se misturar diversos falantes.
Ao longo do século XX, ocorreram outros processos transformadores: uma revolução na cena literária brasileira, com o movimento modernista, e outra no âmbito da comunicação, com o surgimento do rádio, da televisão e, posteriormente, da Internet. Nossa língua acolheu novas influências e, mais uma vez, se modificou. Houve uma intensa assimilação do português popular pelo culto. Expressões de línguas estrangeiras, veiculadas pelas novas tecnologias da comunicação, entraram no vocabulário cotidiano. Foram criadas gírias, palavras e formas de articular frases. 
Hoje, os meios de comunicação nacional levam, a todos os cantos do país, uma linguagem própria e dinâmica, cuja compreensão é compartilhada por praticamente toda a população. Neste início do século XXI, pode-se dizer que nossa língua está vivendo o período mais efervescente de sua história nas terras americanas”

 
Como é facil verificar, a língua portuguesa (e todas as outras línguas) é um organismo de transformações e adaptações, não é algo fixo e imutável como alguns pensam ou gostariam que fosse. A língua deve atender as necessidades de quem a usa e por isso não é possível sedimentá-la para que todos a usem da mesma forma, pois pessoas diferentes possuem necessidades diferentes. Isso é facilmente constatável se observarmos só o território brasileiro: apesar de falarmos o mesmo idioma – o Português – cada região tem a sua particularidade e maneira de usar este mesmo idioma, quer pela sua identidade, quer pela sua História.
A crença de que “só em Portugal fala-se o português correto” ignora toda a trajetória da língua nestes mais de 500 anos de transformações, mas tal concepção é aceita, não só pela baixa auto-estima do brasileiro, mas também pelos seus hiatos de cultura acerca do próprio país. O Museu da Língua Portuguesa é de grande utilidade para quebrar paradigmas ultrapassados e sem relação com a realidade, mas não é suficiente. Precisamos de mais espaços para discutir a língua e a nossa relação com ela. Mais espaços e em mais lugares, indo além da região Sudeste. O debate de assuntos relacionado à Língua Portuguesa e sua Cultura deveria ser de âmbito nacional e ir não restringir-se às comunidades acadêmicas. Resumindo, a cultura deveria ser democratizada.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

"Preconceito Linguístico: o que é, como se faz"

Nós recomendamos a leitura desse excelente livro de Marcos Bagno: "Preconceito Linguístico: o que é, como se faz"

Primeiras Palavras
 Existe uma regra de ouro da Lingüística que diz: “só existe língua se houver seres humanos que a falem”. E o velho e bom Aristóteles nos ensina que o ser humano “é um animal político”. Usando essas duas afirmações como os termos de um silogismo
(mais um presente que ganhamos de Aristóteles), chegamos à conclusão de que “tratar da lígua é tratar de um tema político”, já que também é tratar de seres humanos. Por isso, o leitor e a leitora não deverão se espantar com o tom marcadamente politizado de
muitas de minhas afirmações. É proposital; aliás, é inevitável. Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa
morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam. O preconceito linguístico está ligado, em boa medida, a confusão que foi criada, no curso da história, entre lígua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a língua. A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma culta. Essa descrição, é claro, tem seu valor e seus méritos, mas é parcial (no sentido literal e figurado do termo) e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua — afinal, a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu volume total. Mas é essa aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito linguístico. - Trecho da apresentação do livro.